A evolução da administração pública no Brasil reflete o próprio desenvolvimento do país. Desde o início da era industrial até os dias atuais da revolução digital, a forma como gerenciamos organizações e recursos tem passado por transformações significativas.
Neste artigo, vamos explorar como a administração brasileira se adaptou e inovou ao longo das décadas, influenciando não apenas o mundo corporativo, mas também o setor público e a sociedade como um todo.
Abordaremos alguns pontos importantes desta evolução:
- A transição da gestão tradicional para modelos mais modernos e eficientes
- Desafios e críticas ao modelo gerencial
- Reflexões sobre o caminho percorrido e os desafios futuros
Entender esse processo evolutivo nos ajuda a compreender melhor o Brasil de hoje e nos prepara para os desafios administrativos do futuro.
O Patrimonialismo no Brasil
O patrimonialismo, herança da colonização portuguesa, moldou a estrutura administrativa e política do Brasil desde seus primórdios. Este modelo de gestão, que predominou no país até o início do século XX, caracteriza-se pela confusão entre o bem público e o bem privado na administração do Estado.
Origem e características do modelo patrimonialista:
O patrimonialismo brasileiro tem suas raízes no sistema de administração colonial português. Neste modelo, o Estado era visto como uma extensão do poder do soberano, e os cargos públicos eram tratados como propriedade pessoal do governante. Algumas características marcantes incluem:
- Personalismo nas relações de poder
- Distribuição de cargos públicos baseada em laços pessoais e familiares
- Ausência de distinção clara entre o patrimônio público e o privado
- Centralização do poder nas mãos de uma elite governante
Impactos na formação administrativa e política do país:
Os efeitos do patrimonialismo se estenderam muito além do período colonial, influenciando profundamente a cultura política e administrativa do Brasil. Alguns dos impactos mais significativos incluem:
- Desenvolvimento do clientelismo e do coronelismo
- Persistência da corrupção e do favorecimento pessoal na administração pública
- Dificuldades na implementação de reformas administrativas modernas
- Fortalecimento de oligarquias regionais e locais
Apesar das tentativas de modernização do Estado brasileiro ao longo do século XX, resquícios do patrimonialismo ainda podem ser observados na administração pública contemporânea. A transição para modelos mais eficientes e impessoais de gestão tem sido um processo gradual, marcado por avanços e retrocessos.
A compreensão desse legado patrimonialista é fundamental para entender os desafios enfrentados na implementação de reformas administrativas subsequentes, como a burocracia weberiana e, mais recentemente, o modelo gerencial.
A era burocrática no Brasil
A transição do patrimonialismo para a burocracia no Brasil marcou uma tentativa de modernização e profissionalização da administração pública. Este processo, iniciado na década de 1930, buscava estabelecer uma gestão mais racional e eficiente do Estado.
Transição do patrimonialismo para a burocracia:
A Era Vargas (1930-1945) foi o ponto de inflexão nessa transição. O governo de Getúlio Vargas implementou reformas significativas visando superar as práticas patrimonialistas:
- Criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) em 1938
- Instituição de concursos públicos para ingresso no serviço público
- Padronização de procedimentos administrativos
- Estabelecimento de critérios técnicos para promoções e nomeações
Características principais do modelo burocrático:
O modelo burocrático brasileiro, inspirado nas teorias de Max Weber, caracterizava-se por:
- Formalismo e impessoalidade nas relações
- Hierarquia rígida e centralização do poder decisório
- Especialização e divisão racional do trabalho
- Normatização e padronização de procedimentos
- Meritocracia na seleção e promoção de servidores
Desafios e limitações no contexto brasileiro:
Apesar dos avanços, a implementação do modelo burocrático enfrentou obstáculos significativos:
- Resistência das elites acostumadas ao modelo patrimonialista
- Coexistência de práticas burocráticas e patrimonialistas (“patrimonialismo modernizado”)
- Excesso de formalismo, levando ao fenômeno conhecido como “disfunção burocrática”
- Dificuldade em atender às demandas de um país em rápido processo de urbanização e industrialização
- Rigidez estrutural, que muitas vezes resultava em morosidade e ineficiência
A burocracia brasileira, embora tenha representado um avanço em relação ao patrimonialismo, não conseguiu eliminar completamente as práticas clientelistas e personalistas. O modelo também se mostrou insuficiente para lidar com as crescentes demandas por eficiência e qualidade nos serviços públicos, especialmente a partir da década de 1980.
Essa insatisfação com as limitações do modelo burocrático pavimentou o caminho para as reformas gerenciais que viriam a ser implementadas nas décadas seguintes, buscando uma administração pública mais flexível e orientada para resultados.
Transição para o gerencialismo
A transição do modelo burocrático para o gerencialismo na administração pública brasileira ocorreu em um contexto de profundas mudanças globais e nacionais, marcando uma nova era na gestão do Estado.
Contexto histórico e econômico que levou à mudança:
- Crise do Estado de Bem-Estar Social:
Nos anos 1970 e 1980, o modelo de Estado interventor e provedor entrou em crise em várias partes do mundo. No Brasil, essa crise se manifestou através de um grave desequilíbrio fiscal e da incapacidade do Estado em atender às crescentes demandas sociais.
- Redemocratização e Constituição de 1988:
O fim do regime militar e a nova Constituição trouxeram expectativas de um Estado mais eficiente e responsivo. Paradoxalmente, a Constituição também engessou a administração pública em alguns aspectos, criando desafios adicionais.
- Crise econômica dos anos 1980 e início dos 1990:
A “década perdida” e a hiperinflação expuseram as limitações do modelo estatal vigente.
Cresceu a pressão por um Estado mais enxuto e eficiente.
- Globalização e revolução tecnológica:
A abertura econômica e os avanços tecnológicos demandaram uma administração pública mais ágil e moderna.
A transição para o gerencialismo no Brasil teve seu ápice com a Reforma do Aparelho do Estado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, sob a liderança do ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira. Esta reforma buscava tornar a administração pública mais eficiente, focada em resultados e orientada para o cidadão-cliente.
No entanto, é importante notar que essa transição não foi abrupta nem completa. Elementos do modelo burocrático persistiram (e ainda persistem) na administração pública brasileira, criando um cenário híbrido onde práticas gerenciais coexistem com estruturas burocráticas e, em alguns casos, até mesmo com resquícios patrimonialistas.
Nova Administração Pública (NAP) no Brasil
A Nova Administração Pública (NAP), também conhecida como New Public Management (NPM), representou uma mudança paradigmática na gestão pública brasileira, introduzindo conceitos e práticas do setor privado na administração estatal.
Conceitos fundamentais da NAP:
- Foco em resultados:
- Ênfase na eficiência, eficácia e efetividade das ações governamentais.
- Implementação de sistemas de avaliação de desempenho.
- Descentralização e flexibilização:
- Redução da hierarquia e maior autonomia para gestores.
- Criação de agências executivas e organizações sociais.
- Orientação para o cidadão-cliente:
- Visão do cidadão como cliente dos serviços públicos.
- Foco na qualidade e satisfação do usuário.
- Accountability:
- Maior transparência e responsabilização dos gestores públicos.
- Fortalecimento dos mecanismos de controle social.
- Utilização de mecanismos de mercado:
- Parcerias público-privadas.
- Terceirização de serviços não-essenciais.
- Profissionalização da gestão:
- Valorização das competências gerenciais.
- Capacitação contínua dos servidores públicos.
Os três estágios: Gerencialismo Puro, Consumerism e Public Service Orientation (PSO)
A implementação da NAP no Brasil pode ser compreendida através de três estágios evolutivos, cada um com características e focos distintos:
- Gerencialismo Puro:
- Características:
- Foco primordial na eficiência e redução de custos.
- Visão do usuário principalmente como contribuinte (taxpayer).
- Contexto brasileiro:
- Início das reformas nos anos 1990, com ênfase no ajuste fiscal.
- Programas de desestatização e redução do aparelho estatal.
- Críticas:
- Falta de efetividade (impacto) das ações.
- Foco excessivo em redução de custos, por vezes em detrimento da qualidade.
- Características:
- Consumerism:
- Características:
- Foco na efetividade e aumento da qualidade dos serviços.
- Estímulo à competição entre provedores de serviços públicos.
- Visão do usuário como cliente.
- Contexto brasileiro:
- Implementação de programas de qualidade no serviço público.
- Criação de ouvidorias e canais de atendimento ao cidadão.
- Críticas:
- Nem todos os serviços públicos podem ser objeto de competição.
- Questionamentos sobre tratar o cidadão meramente como “cliente”.
- Características:
- Public Service Orientation (PSO):
- Características:
- Foco na equidade e cidadania.
- Ênfase em accountability e participação cidadã.
- Visão do usuário como cidadão, com direitos e deveres.
- Contexto brasileiro:
- Fortalecimento dos mecanismos de participação social (conselhos, audiências públicas).
- Implementação de políticas de transparência e governo aberto.
- Desafios:
- Equilibrar eficiência com equidade e participação.
- Superar a cultura burocrática e patrimonialista ainda presente em alguns setores.
- Características:
Vale ressaltar que esses estágios não são estritamente sequenciais no caso brasileiro. Elementos de cada estágio coexistem na administração pública atual, criando um cenário, por vezes, contraditório.
A evolução da NAP no Brasil reflete uma busca contínua por um modelo de gestão que possa conciliar eficiência, qualidade e equidade na prestação de serviços públicos, respeitando as particularidades do contexto nacional.
Características do Gerencialismo no Brasil
O gerencialismo na administração pública brasileira trouxe uma série de mudanças significativas na forma de gerir o Estado. Suas principais características refletem uma busca por maior eficiência, flexibilidade e responsividade aos cidadãos.
Foco nos resultados e controle a posteriori:
- Ênfase em metas e indicadores de desempenho:
- Implementação de sistemas de avaliação de performance.
- Utilização de contratos de gestão com objetivos claros e mensuráveis.
- Mudança no paradigma de controle:
- Transição do controle de processos (ex-ante) para o controle de resultados (ex-post).
- Maior autonomia gerencial em troca de responsabilização por resultados.
- Gestão por resultados:
- Adoção de ferramentas como o Balanced Scorecard no setor público.
- Vinculação de remuneração e progressão funcional ao desempenho.
Descentralização e flexibilização:
- Redução da hierarquia:
- Estruturas organizacionais mais horizontais.
- Empoderamento dos gestores.
- Novos arranjos institucionais:
- Criação de agências reguladoras e executivas.
- Estabelecimento de organizações sociais e OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público).
- Flexibilização da gestão de recursos humanos:
- Introdução de regimes de contratação mais flexíveis.
- Programas de capacitação voltados para competências gerenciais.
Orientação para o cidadão-cliente:
- Foco na qualidade do serviço:
- Implementação de programas de qualidade total no serviço público.
- Criação de cartas de serviços ao cidadão.
- Mecanismos de feedback:
- Estabelecimento de ouvidorias e canais de atendimento ao cidadão.
- Realização de pesquisas de satisfação do usuário.
- Simplificação de processos:
- Desburocratização e simplificação de procedimentos.
- Digitalização de serviços públicos (e-gov).
Transparência e accountability:
- Ampliação do acesso à informação:
- Implementação da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011).
- Criação de portais de transparência em todos os níveis de governo.
- Fortalecimento dos mecanismos de controle:
- Ampliação das competências dos órgãos de controle (TCU, CGU).
- Estímulo ao controle social e participação cidadã.
- Prestação de contas:
- Obrigatoriedade de relatórios de gestão fiscal (Lei de Responsabilidade Fiscal).
- Audiências públicas para prestação de contas à sociedade.
Críticas ao modelo gerencial apontam para possíveis conflitos entre eficiência e equidade, bem como para os riscos de uma visão excessivamente economicista da gestão pública. Nesse contexto, tem havido um movimento em direção a abordagens mais participativas e orientadas para a cidadania, sem, contudo, abandonar completamente os princípios gerenciais.
Conclusão
A administração pública brasileira passou por significativas transformações ao longo de sua história, evoluindo de um modelo patrimonialista para abordagens mais modernas e eficientes. No entanto, o caminho percorrido não foi linear, e os desafios persistem. Principais reflexões sobre esse percurso e os desafios futuros.
- Evolução dos modelos de gestão:
- O Brasil transitou do patrimonialismo para o modelo burocrático e, posteriormente, para abordagens gerenciais.
- Cada modelo trouxe avanços, mas também apresentou limitações.
- A coexistência de elementos de diferentes modelos é uma realidade na administração pública brasileira.
- Reformas administrativas:
- As reformas, desde a Era Vargas até a Reforma Gerencial dos anos 1990, buscaram modernizar o Estado.
- Houve avanços significativos em termos de profissionalização, eficiência e transparência.
- No entanto, muitas reformas enfrentaram resistências e implementação parcial.
A administração pública brasileira fez progressos significativos, mas ainda enfrenta desafios complexos. O futuro exigirá uma abordagem que combine os melhores elementos dos diferentes modelos de gestão, aproveitando as oportunidades oferecidas pela tecnologia, mas sem perder de vista os valores fundamentais do serviço público.
Referências
BRASIL. Presidência da República. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Mare, 1995.
BRESSER PEREIRA. Luiz Carlos. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial.
ABRUCIO, Fernando Luiz. O impacto do modelo gerencial na administração pública: Um breve estudo sobre a experiência internacional recente. Cadernos ENAP, n. 10, 1997.
(https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/556)